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Comida dá dinheiro

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Comida dá dinheiro

Comida dá dinheiro

Dias atrás o chef inglês Jamie Oliver postou em seus perfis que estava desolado por causa do fechamento de 22 dos 25 restaurantes de sua rede no Reino Unido, que deixaram mais de 1.000 pessoas desempregadas. Jamie ficou conhecido no Brasil por seus programas culinários, exibidos pelo canal GNT. Autor de vários livros e apresentador de programas de TV mundo afora, Jamie também é dono de uma cadeia internacional de restaurantes, que tem três unidades no Brasil (o “Jamie’s Italian”).

Ano passado, por conta de uma grave situação financeira, sua rede já tinha fechado 12 dos então 37 restaurantes existentes no Reino Unido, além de ter vendido cinco de suas filiais na Austrália. As unidades do Brasil fazem parte de uma franquia independente e não serão afetadas pela crise da rede.

Quem conhece o mundo dos chefs da TV sabe que Jamie Oliver tem um famoso desafeto, o também chef inglês Gordon Ramsay.

Assim como Oliver, Ramsay apresentou programas culinários mundialmente famosos, como os reality shows “MasterChef”, “Hell’s Kitchen” e “Kitchen Nightmares”, escreveu livros e é dono de uma rede de restaurantes. E, assim como Oliver, Gordon Ramsay já enfrentou graves problemas com seus restaurantes.

Desde 2012, o grupo “Kavalake”, que reúne os restaurantes da rede de Ramsay, registrou lucro em apenas um ano, e foi obrigado a fechar uma das unidades da rede, o “Maze”, no bairro de Mayfair, em Londres. Problemas com sócios, disputas judiciais e crises financeiras, como a de 2009, quase quebraram a rede do chef inglês, que encerrou o ano de 2017 com prejuízos de 4,3 milhões de euros (o equivalente a quase 19 milhões de reais).

Um fato curioso é que, em um dos realities que apresentava, o “Kitchen Nightmares”, Gordon visitava restaurantes à beira da falência e se oferecia para salvar os negócios. O programa fazia uma revolução nos ambientes, reformando os espaços, demitindo e contratando gente e mudando os cardápios. Esse reality teve duas edições, uma no Reino Unido (com 7 temporadas e 36 episódios) e outra nos Estados Unidos (7 temporadas e 90 episódios) mas, na prática, não teve muito sucesso: dos 105 restaurantes que participaram do show, 78% acabaram fechando.

No Brasil, a versão do programa “Kitchen Nightmares” foi exibida na Band em 2017. Sob o nome de “Pesadelo na Cozinha”, o reality foi apresentado pelo chef francês Érick Jacquin. Outro fato curioso é que, como Ramsay, Jacquin já teve problemas com seu restaurante.

Jacquin ficou famoso do grande público no Brasil por sua participação como jurado no “MasterChef”, na Band, que está atualmente na sexta temporada, mas ele já era conhecido no meio da alta gastronomia. De 2006 a 2014 Jacquin comandou, em São Paulo, o “La Brasserie Érick Jacquin”, um dos restaurantes brasileiros mais premiados.

As dívidas acumuladas pelo chef o obrigaram a fechar as portas do restaurante. Jacquin, que afirma ainda estar pagando sua dívida, ficou traumatizado com a experiência, a ponto de jurar nunca mais ter funcionários. Hoje, além do trabalho na TV, ele é chef consultor de restaurantes de terceiros, mas não voltou a abrir um negócio seu.

Outra jurada do MasterChef Brasil, a argentina Paola Carosella, já passou por apuros. Para sair de uma sociedade que não andava bem, Paola se viu obrigada a vender ao sócio sua parte do restaurante “Julia Cocina”. Ela recomeçou e abriu outro restaurante, o “Arturito”, desta vez com sete sócios. Esse negócio também passou por dificuldades, o que acabou levando a chef a fazer um empréstimo de 2 milhões de reais, com os quais comprou a parte dos sócios, e passou a tocar o empreendimento sozinha. Essa história inspiradora é contada pela própria Paola num episódio do Day1 da Endeavor.

E a lista de cozinheiros famosos que passaram maus bocados nos negócios não para por aí, e inclui chefs brasileiros.

Nos idos de 2012 era exibido, no Fantástico, o quadro “Mago da Cozinha”, em que o então jovem chef Felipe Bronze recriava pratos com técnicas não convencionais da chamada gastronomia molecular, que foi moda nos restaurantes há alguns anos. De lá para cá Felipe participou de programas na Record e no GNT, como “The Taste Brasil”, “Que seja doce”, “Perto do Fogo” e “Top Chef”.

Felipe é proprietário do restaurante “Oro”, único no Rio de Janeiro a conquistar duas estrelas Michelin, a mais alta classificação da gastronomia internacional. Apesar do sucesso, Felipe fechou o “Oro”, anos atrás, para reabri-lo totalmente reformulado. Antes disso, Felipe já havia experimentado as dificuldades de empreender com seu restaurante “Z”, aberto em 2004 e fechado depois de 11 meses por problemas na sociedade. Outro projeto que teve que ser revisto por Felipe foi o “Pipo”. A primeira unidade do restaurante, aberta no Rio de Janeiro no bairro nobre do Leblon, em 2013, foi fechada e reaberta em 2016 num shopping. A mudança não deu certo e o “Pipo” carioca fechou definitivamente em 2018, mas Felipe abriu um novo “Pipo” na capital paulista, em 2019.

Outro chef premiado a ter experimentado o baque de empreender foi Carlos Bertolazzi, apresentador de programas como “BBQ Brasil”, “Hell’s Kitchen” (“Cozinha sob pressão”) e “Fábrica de Casamentos”, do SBT. Em 2014, Bertolazzi fechou as portas do seu restaurante “Zena Caffé” do Itaim, em São Paulo, antes de completar um ano de atividade, por não atingir o movimento esperado.

Como vimos, mudam os lugares e os personagens, mas a história se repete. São todos casos de excelentes cozinheiros, que fazem comida boa, de qualidade, mas que, por um ou outro motivo, acabam fracassando em seus negócios.

Aqui é importante fazermos parênteses: quebrar, falir, ter um negócio que dê errado não é feio ou vergonhoso. Se o empreendedor se esforçou mas acabou não obtendo sucesso, não tem porquê se envergonhar. Pelo contrário, a experiência do fracasso precisa ser encarada como uma excelente oportunidade de aprendizagem.

O ponto dessa nossa conversa é outro.

Nós vimos que, por melhores ou mais famosos que fossem os cozinheiros, isso não os impediu de fecharem seus restaurantes.

Isso lembra uma história muito interessante contada pelo americano Michael Gerber em seu livro “O mito do empreendedor”.

Gerber conta a história de Sarah, uma funcionária de uma confeitaria. Sarah era conhecida por fazer tortas deliciosas, e seus parentes e amigos sempre a perguntavam por que ela não saía do emprego e não abria sua própria loja de tortas. Um dia ela foi contaminada pela febre do empreendedorismo, tomou coragem, saiu do emprego e abriu seu próprio negócio.

E foi justamente a partir desse dia que Sarah percebeu uma coisa muito importante: que ela só sabia fazer… tortas!

Esse livro foi escrito nos Estados Unidos há mais de 30 anos, mas continua muito atual, porque conta uma história que se repete desde sempre e em todo lugar: o trabalhador que é especializado, que tem o conhecimento técnico, acredita que é empreendedor e que seu conhecimento técnico é suficiente para administrar com sucesso uma empresa da área em que ele atua.

Quantas histórias você já ouviu de alguém que era muito bom no que fazia, trabalhando para outra pessoa, e que começou seu próprio negócio? Quantas vezes você já ouviu coisas como “você é muito bom no que faz; bem que podia parar de trabalhar para os outros e abrir seu próprio negócio”, ou “pra quê dar dinheiro pro seu patrão, se você pode ser seu próprio patrão”?

Alguém que cozinha bem como empregado num restaurante e que abre uma portinha sua, assim como a Sarah, rapidinho descobre que ele só sabe cozinhar bem. Não sabe calcular custos e formar preços, não sabe contratar nem gerir pessoas, não sabe administrar o estoque, não sabe divulgar seu negócio, não sabe quanto vai precisar de capital de giro. Ele só sabe cozinhar.

Os exemplos de que falamos há pouco, dos chefs famosos, deixam bem claro isso: não basta cozinhar bem para ter sucesso num restaurante. A qualidade da comida não é o único fator que determina o sucesso de um restaurante.

E, quando se fala em empreender no setor da alimentação no Brasil, existe outro grave problema: os chamados vieses cognitivos. É a tendência de pensar de uma maneira que pode levar o empreendedor a tomar decisões irracionais.

São os mitos, as lendas, aquelas afirmações que são compartilhadas entre as pessoas como verdades absolutas, mesmo sem qualquer base, como: “comida vende”, “comida dá dinheiro”, “todo mundo precisa comer, por isso o restaurante sempre vai ter clientes”. Essas são premissas falsas! Mesmo assim, por falta de analisar melhor o mercado, muita gente embarca nessa e acaba abrindo um negócio na área da alimentação.

Ora, se isso fosse realmente verdade, nenhum restaurante fecharia por falta de clientes!

Mas, na realidade, o ramo da alimentação no Brasil é de altíssimo risco: dados do setor mostram que, de cada 100 restaurantes abertos, 35 fecham em até dois anos, e apenas 3 funcionam por mais de 10 anos.

E, muitas vezes, por trás das placas de “passa-se o ponto” dos restaurantes que fecham existem histórias de famílias inteiras que perderam seus sonhos e que, às vezes, perderam as economias de toda uma vida.

Por isso, é fundamental que, antes de pensar no negócio a ser aberto, o empreendedor pesquise muito o mercado, analise alternativas e decida, com base em fatos e em números concretos, qual caminho seguir. E mais, antes de empreender, é necessário ter o conhecimento básico de gestão, o mínimo para saber conduzir seu negócio da forma correta.

Afinal, se é difícil ter sucesso pra quem cozinha bem, tem dinheiro e é famoso, imagina pra alguém que pode até cozinhar bem, mas não é famoso, não é rico e não domina questões básicas de Administração.

Essa falta de conhecimento em temas de Administração também causa problemas em outras profissões que são altamente especializadas em aspectos técnicos, como os profissionais liberais (engenheiros, médicos, dentistas, veterinários, psicólogos, fisioterapeutas, advogados etc.). Via de regra, na faculdade esses profissionais aprofundam seus estudos em suas áreas técnicas, mas não aprendem a lidar com a administração de seus escritórios e consultórios, como um negócio.

Mas isso é tema pra outra conversa.